Testemunho com tristeza, como professor do curso de Medicina, o alastramento de uma ira epidêmica que impede as corporações médicas de perceberem que suas manifestações alargam cada vez mais o hiato existente entre como os médicos se veem e como a sociedade os tem visto. (Luis Fernando Tófoli, Unicamp)A revista Veja da semana passada (Edição 2336) trouxe uma entrevista com o cardiologista Elias Knobel, que em 1972 fundou a UTI do Hospital Israelita Albert Einstein e onde foi diretor por 30 anos (Lições de uma vida na UTI). "Meu maior patrimônio profissional é ter sido formado no tempo em que o cuidado central da medicina era o paciente e não o retorno financeiro trazido pelo procedimento (...). A medicina precisa ter resultado financeiro para sustentar-se e crescer, mas o paciente não pode ser considerado apenas como um número. É preciso encontrar o meio termo", afirma. Knobel trata da relação paciente, prestação de serviço e custo com bastante objetividade, mas a questão, a nosso ver, é mais profunda. Luis Fernando Tófoli, psiquiatra e professor de Psicologia médica da Universidade de Campinas (Unicamp), em seu artigo "Uma Ira Epidêmica”, demonstra: "o Brasil se encontra numa encruzilhada sanitária e precisa escolher qual o modelo deseja seguir. Queremos ser como o Canadá, que tem um sistema nacional de saúde que cuida praticamente de todos os cidadãos ou como os Estados Unidos que detém o recorde mundial de gastos em saúde e um sistema público nanico”. Seu artigo merece ser lido por inteiro porque aborda com bastante isenção o que está por trás desta problemática toda. O que se vê é que o "Programa Mais Médicos" – e seus desdobramentos na sociedade – é de uma perplexidade profunda e absurda. Desde a forma política eleitoreira e organizacional de como foi caracterizado pelo governo, transpassado ao corporativismo da classe médica e adicionado à deseducada execração pública feita na recepção aos médicos cubanos. Inúmeros representantes da classe médica brasileira têm demonstrado a sua indignação com o pouco caso governamental no trato da questão e com a abordagem discriminatória da mídia nacional. Todos estes fatores permitem perceber a complexidade de diferentes ideias, o ambiente de conflitos exacerbados entre correntes políticas antagônicas e de pensamentos divergentes direcionados, na maioria das vezes, a interesses pessoais. A ideologia política e religiosa, a cultura, a educação, a geografia, a sociologia, a economia, a riqueza, a miséria e as idiossincrasias percebidas de cada desses setores contribuem para afirmar que o ser humano, na sua complexidade absoluta, tem a mente direcionada para seus próprios interesses. Num país onde a saúde pública foi levada a uma situação calamitosa, qualquer ação para atender às populações periféricas das grandes cidades e dos afastados rincões é válida. Sabemos perfeitamente que o médico não trabalha só. Precisa de estrutura e de outros profissionais da saúde para exercer o seu ofício de forma interdisciplinar. Isto não impede, porém, de nos alinharmos ao que pensa o médico David Oliveira de Souza, favorável à vinda dos médicos cubanos. É melhor ter apenas um médico com estetoscópio e aparelho de pressão para preservar a vida de pais e mães de famílias hipertensos ou diabéticos. É preferível conseguir prevenir a sífilis congênita, que causa grandes males às crianças cujas mães não tiveram um médico para tratá-las com penicilina. É salutar ver as mães ribeirinhas ou das favelas terem prescrição para que seus filhos tomem antibióticos para evitar uma pneumonia, valendo o mesmo para outros males, como gastroenterites, crises de asma e tantos outros problemas de saúde para os quais bastam a atenção de um médico e seu estetoscópio. Enfim é nosso país e vamos precisar, com destemor, superar os obstáculos na busca de soluções para os problemas que a realidade nos impõe, que neste caso está em sua raiz: o corporativismo das entidades médicas, que sempre foi um importante empecilho para a expansão dos cursos de medicina, sob a premissa de que o sistema particular não tinha condições de atender com qualificação, o crescimento da demanda advindo do aumento da população. O Ministério da Educação (MEC) sempre se subordinou às medidas exaradas pelo Conselho Nacional de Saúde na questão do número de médicos necessários ao país. O Brasil tem hoje carência de médicos por culpa própria e vai precisar buscá-los, a “toque de caixa”, seja onde for: na Argentina, na Indonésia, em Portugal e mesmo em Cuba. Este país, no entanto, soube antever que tal demanda ocorreria e se especializou na formação de profissionais para o mundo. Num ambiente globalizado as premissas gerais orientadoras das ações valem também para os serviços médicos. Quando se trata, porém, do aumento de vagas e da criação de faculdades de medicina não se pode atuar de afogadilho como vem fazendo o MEC que, ao extrapolar o contexto existente, cria novas normas legais tal como colocar sob a égide de um leilão de preços a criação de uma faculdade de medicina, como se esta fosse uma concessão do estado. Além disso, a concorrência pública é feita com bens e serviços que podem ser medidos depois de entregues e têm características e forma físicas definidas – que não é o caso de um curso que poderá ser realmente avaliado, no mínimo, depois de alguns anos de funcionamento de sua primeira turma. Nesse sentido, o regime de concorrência disposto na Lei nº 8.666/1993 – que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública – contraria o princípio à livre iniciativa assegurado pelo art. 209 da Constituição Federal e que, portanto, não será definitivamente aceito pelo setor privado de ensino. No que se refere aos novos cursos de medicina será de fundamental importância criar critérios mais consentâneos com os tempos atuais, mais objetivos em termos técnicos e educacionais e menos dependentes do poder político. É só analisar o tempo de aprovação dos cursos de medicina nas IES existentes, após a criação de seu primeiro curso para perceber nitidamente a influência dos “donos do poder”. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC) demonstram que 36 IES levaram mais de 30 anos para terem seus cursos de medicina aprovados; 10 IES levaram de 20 a 30 anos para a aprovação; 10 IES levaram de 10 a 20 anos; 21 IES levaram de 5 a 10 anos e 38 IES menos de 5 anos. Deveria ter existido mais racionalidade para a aprovação dos cursos. Uma análise isenta torna-se urgente e necessária visando coibir a longa espera pela aprovação do curso e corrigir as injustiças do processo no âmbito do MEC, dentre as quais se inclui aquelas referentes ao aumento de vagas nos cursos de Medicina. As críticas e as propostas às questões arroladas no Sumário Executivo da Audiência Pública realizada pela Secretaria de Regulação e Supervisão de Educação Superior (Seres/MEC) para dar conhecimento dos novos procedimentos para autorização de cursos de Medicina, em especial as Portarias Normativas MEC nº 2 e nº 3/2013 referentes ao aumento de vagas e à criação de novos cursos, foram reunidas em documento discutido com representantes de cursos de medicina no país e protocolado pela ABMES no MEC (clique aqui para acessar o documento). A faculdade de Medicina não é a mina de ouro que todos pensam, tal como afirmamos em artigo publicado no Blog ABMESeduca, e nunca poderá ser pensada como uma instituição única para uma determinada cidade. Ao contrário, deverá ser planejada como um polo universitário capaz de abranger uma região ampla e com o tempo ir criar outros cursos superiores e ter sustentabilidade institucional e financeira. Manter-se apenas com um curso de medicina e ainda ter que oferecer condições de melhoria ao hospital SUS local e manter um hospital-escola é uma tarefa impossível... Só com financiamento do BNDES.